Feenberg, Ellul e a eficiência tecnológica

Posted: December 7th, 2019 | Author: | Filed under: General | Comments Off on Feenberg, Ellul e a eficiência tecnológica

https://cms.qz.com/wp-content/uploads/2019/07/whatsapp.png?w=1600&h=937&strip=all&quality=75

(ilustração: Bárbara Abbês)

Andrew Feenberg em sua obra “Transforming technology” (2002) prolonga as análises da Escola de Frankfurt, em especial as de Marcuse, para discorrer sobre a tecnologia, sua vinculação com o capitalismo e a possibilidade de uso democrático da tecnologia.

Para Feenberg, a tecnologia constitui a própria estrutura material da Modernidade. Não é neutra, pois é carregada de valores provenientes de sua vinculação com o capitalismo, como controle, eficiência e uso de recursos – a chamada “cultura de empresários”. O autor defende que a tecnologia é controlável e está sob o uso de valores antidemocráticos, sendo ela a própria manifestação de uma racionalidade política. Acredita que as instituições sociais e o desenvolvimento tecnológico se adaptam reciprocamente, um ao outro. Logo, a tecnologia deve ser controlada democraticamente.

A cultura de empresários citada pelo autor é a cultura que enxerga o mundo em termos de eficiência, recursos e controle. Feenberg reconhece a tecnologia como a manifestação de uma racionalidade política, pois os valores da cultura capitalista estão impregnados no desenho tecnológico, e, para que esse desenho mude, seria preciso realizar mudanças culturais.

A tecnologia adquire caráter social na concepção de Feenberg, pois ao invés das decisões tecnológicas se darem conforme o funcionamento eficiente do processo/artefato em questão, dão-se também conforme interesses sociais, sendo a própria eficiência definida como a satisfação de determinados interesses e valores sociais.

A eficiência da tecnologia num sistema capitalista, em resumo, tem como medida o lucro, medida que se realiza essencialmente por meio da compra e venda de mercadorias. Isso significa que outras preocupações como qualidade de vida, a proteção do meio ambiente e acesso a direitos básicos como saúde, educação e transporte ocupam lugares secundários, quando não são simplesmente ignorados dentro de um sistema capitalista técnico.

Para mudar esse cenário, Feenberg propõe que a eficiência seja concebida de modo a atender às exigências humanas de maneira democrática, assumindo medidas tais como: ampliação do tempo de vida dedicado à aprendizagem, a democratização da administração e a inclusão de uma variedade cada vez maior de necessidades humanas nas técnicas existentes para, desse modo, evoluir em direção a um tipo de socialismo a partir dos atuais estados de bem-estar social.

Já no ponto de vista do filósofo Jacques Ellul em obras como “A técnica e o desafio do século” (1968) a tecnologia é autônoma. Dizer isso implica dizer que, para o autor, a partir do séc. XVII vê-se surgir um novo meio, tal qual era o meio da natureza; trata-se agora de um meio tecnológico.

Para Ellul, todos os fenômenos se localizam num meio tecnológico. Isto significa que a política, por exemplo, não é influenciada, mas se situa num meio tecnológico, e seu movimento consiste em se adequar a esse meio – a última eleição presidencial brasileira, em 2018, cuja ação e propaganda política ocorreu em peso por meio de aplicativos de grandes corporações tecnológicas como Facebook, Whatsapp e Youtube, serve de exemplo à essa adequação.

A tecnologia possui uma lógica própria, é autodeterminante e sua racionalidade se baseia unicamente na eficiência do processo/artefato. Sendo assim, retira-se do domínio da escolha humana, pois a escolha está no domínio da eficiência: o mais eficiente é o escolhido dentro do meio tecnológico.

A eficiência ao modo da tecnologia autônoma se resume, então, em relações de meios e fins, de modo a alcançar máxima eficiência no ajuste destes. Não importam os fins últimos, pois a tecnologia autônoma não possui valores, mas sim o perfeito ajuste entre meio e fim, a partir de um conjunto de regras que definem a tecnologia. É por isso que a sociedade tende a se ajustar à tecnologia, e não o contrário: os fins, desejos humanos, valores e tentativas de controle são irrelevantes para a tecnologia, que se põe autodeterminada tal qual um meio natural, a partir de relações eficientemente ajustadas entre meios e fins.

Na abordagem de Ellul a eficiência gira em torno de uma acumulação de meios que estabelecem primazia sobre os fins. Isto é, a tecnologia é autodeterminada, tal qual a natureza, e desenvolve-se segundo um processo causal, mas não dirigido a fins, pois não há intervenção humana na concepção de eficiência da tecnologia autônoma. A eficiência é racionalidade sistemática, pois se trata somente de um sistema de regras que eliminam o discurso espontâneo e a criatividade pessoal para, no lugar, mostrar-se como uma racionalidade matemática no ajuste eficiente de meios a fins, não importando quais sejam os fins, já que a tecnologia é autônoma em relação a valores, ideias e Estados.

Para Feenberg a eficiência tecnológica é, de fato, o próprio interesse social. Disfarçada de interesse no ajuste técnico eficiente, mas preenchida por altas doses de valores e intenções humanas, e da própria cultura empresarial, a tese feenberguiana de eficiência provém de sua famosa tese sobre a tecnologia. Se para o autor a tecnologia é controlável e serve aos interesses do capitalismo, sua concepção de eficiência também afirma uma tecnologia controlável e feita de valores, sendo a eficiência o pano de fundo que indica os interesses por detrás de cada artefato e processo tecnológico. Ellul, por sua vez, defende uma tecnologia completamente autônoma, ocupando o mesmo lugar que um dia a natureza ocupou no desenvolvimento humano até o século XVII. Sendo o meio em que vivemos, não tem valores, intenções ou sistemas políticos/econômicos; somente obedece a eficiência de ajuste meio/fim, aquém de qualquer fim, independente e não controlável.

Partindo de quais pressupostos poderíamos afirmar uma saída mais democrática e humana frente aos problemas criados sob o uso da tecnologia?

Sendo ela controlável, por que ainda não fomos capazes de controlá-la, ou de minimizar formas de utilização da tecnologia antidemocráticas e/ou de caráter essencialmente voltado ao lucro? Seja por meio de legislações – nem sempre cumpridas ou cada dia mais distantes da consulta pública, como o caso da atual LGPD brasileira e as recentes alterações realizadas sob o governo de Jair Bolsonaro em 2019 -, seja por meio da ação hacker de whistleblowers como Julian Assange, Chelsea Manning e Edward Snowden – atualmente presos ou perseguidos por diversos países.

Eleições pautadas na divulgação em massa, via redes sociais, de notícias falsas sobre o oponente – estratégia que caracterizou a última eleição presidencial brasileira em 2018, na disputa entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, majoritariamente -; a utilização da tecnologia de mineração de dados para coletar e criar perfis a partir dos dados de 87 milhões de usuários do Facebook, sem consentimento, visando a modulação de suas convicções políticas por meio da rede social de Zuckerberg – estratégia utilizada pelo atual presidente dos EUA, Donald Trump, no escândalo da Cambridge Analytica em 2016.

Sendo a tecnologia autônoma, que perspectivas podemos ter para a resolução de problemas sociais, políticos e econômicos que também têm em si a presença da tecnologia? Que saída encontrar, então, para problemas sociais e tecnológicos? O problema está na tecnologia, autônoma em relação aos valores humanos, ou na política, na economia e na cultura, humanas e valorativas? Ainda é possível separar humano e não-humano?

Leticia Rolim

Referências:

CUPANI, Alberto. A tecnologia como problema filosófico: três enfoques. Scientiae studia, São Paulo, v.2, n. 4, p. 493-518, 2004.


Comments are closed.