Trabalho em saúde nos tempos de COVID-19
Posted: May 14th, 2020 | Author: Perceptos | Filed under: General | Tags: Biopolítica, Covid-19, Governamentalidade, Saúde | Comments Off on Trabalho em saúde nos tempos de COVID-19Imagem: Susana Vera/Reuters
Me pego durante a noite no recolhimento de onde moro agitado pesquisando em meu smartphone o que seria uma citocina. Durante o dia enquanto estava na UBS ( unidade básica de saúde) onde trabalho assistia de relance o noticiário vespertino televisivo sobre o coronavírus quando um dos convidados do programa menciona a palavra citocina a elencando como uma agente importante no processo doença ocasionado pelo vírus. O convidado era um infectologista que buscou resumidamente explicar a motivação de falarmos sobre um grupo de risco. Existem diversos tipos de citocinas com funções variadas sendo parte delas atuar na regulação do mecanismo inflamatório infeccioso do organismo. Há um momento pró-inflamatório em que se busca destruir moléculas maléficas, no caso as do vírus, e no antiinflamatório busca controlar a resposta da defesa imunológica para que esta não acarrete mais malefícios do que benesses ao corpo humano. Pois bem não apenas em infecções se encontram as inflamações e as citocinas. Doenças como hipertensão, diabetes mellitus dentre outras de caráter crônico são influenciadas pelo mecanismo citocínico apresentando um desequilíbrio entre as respostas anti e pró. Ao passo que envelhecemos esse processo também ocorre levando a uma gradual deterioração imunológica. Não mais me alongando a essa questão, aprendi com a breve leitura digital de notícias e com a fala do infectologista que a COVID-19, ao que aparenta os estudos iniciais, é uma doença provocadora em casos graves de uma “tempestade citocínica” na qual a ação pró inflamatória do organismo é muito mais forte do que fornece a anti levando a uma síndrome respiratória, ou seja, a trama do agente viral é causar um adoecimento pela própria defesa de nossos corpos. Dessa forma os classificados como grupo de risco podem apresentar maior suscetibilidade ao agravamento da doença uma vez que já apresentam uma relação citocínica desequilibrada.
Volto a mim analisando o que pesquisei. O decorrer da noite me aparenta mais tranquilo pós leitura. Sei bem que em meus pensamentos não compreender ou estranhar situações e coisas me causa um mal estar. Na UBS em que trabalho cada um procura ou já exercita seus procedimentos para atenuar os impactos da pandemia em sua sanidade. Ignorar ou manter no inconsciente é uma alternativa, mas nas conversas atuais se percebe uma inclinação a buscar terapias senão agora, para o pós crise. Tal percepção pode vir a não se realizar, mas o abalo emocional existe e se demonstra mais nítido na possibilidade dos profissionais de saúde transmitirem a doença aos familiares. A culpa se instaura mesmo não havendo um contágio (será que sou um caso assintomático?) agindo como uma pré indicativo de doença. Então o não contaminado está/é doente? Essa classificação típica da biomedicina mantém uma relação estreita com o que os estudos de inspiração foucaultianos nos apresentam conceitualmente como biopolítica, biopoder e governamentalidade. Nesse sentido o poder biomédico agencia nossos hábitos mantendo uma relação estreita com a economia sendo também base para formas de se viver e sentir. Ocorreu com a pandemia uma intensificação na disseminação de vídeos e mensagens com fórmulas e ingredientes para se manter uma higienização e dieta alimentar preventiva ao adoecimento. O coronavírus fornece novos contornos a um processo de assujeitamento e subjetivação do qual me atentarei aos efeitos para com os trabalhadores na área da saúde sendo também abordado a reestruturação produtiva em saúde ocasionada por ela, em particular, ao que ocorre na UBS em que trabalho.
No que se refere a tecnopolíticas, na distinção entre tecnologias duras e relacionais no arranjo sociotécnico da UBS, a COVID-19 levou a uma reestruturação produtiva uma vez que parte da força de trabalho integrante se encontra no grupo de risco e puderam se afastar do ambiente de trabalho via decreto municipal. Àqueles que se mantiveram se depararam em uma situação em que as divisões e protocolos existentes foram modificados. As consultas eletivas foram canceladas, consultórios foram repassados à ala do Pronto Atendimento na tentativa de minimização de contágio interno, as visitas domiciliares ( de suma importância na vinculação entre usuário e UBS, assim como no acompanhamento do processo saúde/doença) de agentes comunitários foram via decreto municipal canceladas (em outras cidades não foram) e a campanha vacinal de influenza antecipada para ajudar na identificação de casos de coronavírus. Ocasionou de o gerente da UBS estar de férias, consequentemente a assistente de gestão pública da unidade assumiu a função. Dois dos cinco enfermeiros chefes se afastaram via decreto. Somente um (1) auxiliar de enfermagem permaneceu. Dada a situação as divisões de equipes e microáreas dentre o território se tornaram disfuncionais, os compromissos com a secretaria de saúde temporariamente modificados. Digo compromissos como por exemplo a suspensão temporária dos grupos (de insulino dependentes, de gestantes, de apoio ao cuidador dentre outros) com reuniões mensais dos usuários da UBS em que se trabalha a educação em saúde. Revogou-se a obrigatoriedade de assinar as retiradas de materiais de insumo pelo usuário da UBS sendo somente necessário o trabalhador escrever no espaço indicado COVID-19 visando-se o não compartilhamento de canetas, manuseio de documentos nem a permanência por muito tempo no ambiente insalubre. Em consonância a esse movimento a descrição do mapa diário do ACS e a do enfermeiro da família estão sendo respaldadas através do código “COVID-19”. Dessa forma uma resposta a um email advindo da regional de saúde cobrando dados sobre um determinado trabalho se justifica, no limite, com o termo “COVID-19”.
Os protocolos, os referenciais técnicos e administrativos e de igual forma os usuários são os instrumentais que fazem funcionar a UBS, sem estes os trabalhadores em saúde não realizam a produção em saúde. No referencial macropolítico a OMS e os Estados nacionais seguem mantendo uma relação com momentos ora conflituosos ora consonantes. Aos profissionais de saúde e no caso observado também servidores públicos municipais, o referencial medicinal misturado as preferências políticas partidárias e político ideológicas intensificou um clima de tensão e atrito. A não conformidade entre o executivo estadual e federal só piora. Para alguns a eminente desestabilização dos sistemas de saúde prenunciava o estado de calamidade pública, para outros a situação geraria apenas polêmicas em torno do poder executivo, contudo sem força pois agora a pátria amada descontaminada da corrupção aguentaria tranquilamente uma gripezinha. Somados a situação inicial em que não se encontravam na rede EPI suficientes aos funcionários, começamos a questionar não se estamos preparados (a sensação é que não estávamos) mas como minimizaremos os danos. Ora a movimentação de prevenção em saúde se tornou prevenção em UTI (não há respiradores suficientes), a governamentalidade aceita determinada quantidade de mortes com o condicional de minimizar os impactos na economia e esse discurso está se reverberando sendo a vontade de muitos que se retome a “normalidade” mesmo se a situação pandêmica não evidenciar melhora. Além disso a não adoção de parte da população ao distanciamento social voluntário coloca os trabalhadores em saúde, e os da UBS, a questionar sua função na estrutura. Do que adianta a energia e esforços dispensados se o pacto não está sendo cumprido por todos? Há ainda um sentimento extremamente perverso do qual os trabalhadores em saúde não afastados experimentam algo próximo de um sentimento de inveja em relação aos que estão pois estes não vivenciam, pelo mesmo não da mesma forma, a situação pandêmica. Uma inveja que leva a uma pessoa a desejar ter uma doença crônica o encaixando no grupo de risco para não ficar na linha de frente. Por outro lado, um servidor portador de doença crônica se afastar leva a um sobrecarregamento daqueles que permanecerão, então serei eu nesse momento tão crítico que “abandonarei” o meu companheiro de profissão? Uma outra situação contribui ao caldeirão de emoções experimentados pelos trabalhadores em saúde e está ligada ministério da saúde. Uma convocatória para cadastramento em um banco de dados na qual os profissionais se alistam e se sujeitam a serem chamados, se necessários, a trabalhar diretamente ao órgão onde quer que seja dentro do território brasileiro. Há um misto de sensações entre os que estão contrariados e os que aceitam o chamamento. A responsabilidade pública ligada a solidariedade social está misturada ao identitarismo nacional. Considerações como se de fato vale a pena se separar dos familiares para ir trabalhar para este governo e por outro lado, aos que se sensibilizam com o nacionalismo, muitos não concordam com as decisões feitas pelo ministério e secretarias de saúde, porém negar um chamamento nessa situação seria negar a pátria?
Por fim, observando a micropolítica e me atentando a UBS anteriormente referenciada, os referenciais em abalo e o afastamento de parte de corpo técnico e administrativo levou a uma situação em que a construção interna se efetivou com novos pactos. De certa forma a justificativa “COVID-19” possibilitou uma abertura a ingerência com a uma prática em saúde coletiva mais livre. Aos que têm estratégia saúde da família a vinculação com a população facilitou a perpetuação das novas regras e condicionalidades necessárias, respeitando evidentemente o princípio da universalidade e solidariedade social. Foi nítido também a dificuldade daqueles que não possuem acompanhamento via Saúde da Família em entenderam as modificações para a ala de emergência e da cobertura vacinal. Passada as primeiras semanas e a comprovação da efetividade das medidas, a sensação coletiva que fica (diferente da inicial) é a de que podemos lidar com a pandemia apesar do que se passa com referenciais técnicos e administrativos. Para além do que a governamentalidade possa assujeitar e, no limite da situação, aceitar de mortes, existem aqueles que não aceitam e dentre os trabalhadores da saúde isso tende a se tornar nítido. A morte faz parte da vivência destes. Tem lógica e significado sendo sentida de diversas formas por cada um, mas àquela justificada pela razão de “o país não pode parar”…essa não se justifica.
Henrique Ribeiro
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