Posted: July 4th, 2020 | Author: Perceptos | Filed under: General | Tags: ciborgues, Covid-19, ensino a distância, pedagogia, tecnologia | Comments Off on EAD: Use o celular! Mas saiba escondê-lo…
Foto: Vitor Ian
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Na sala de aula os smartphones já estão presentes há alguns anos. Conectados ao fone de ouvido tocando o funk “estôrado” dos alunos que te olham com cara de paisagem enquanto escutam; gravando a sua aula de modo incriminativo, como em muitos casos da onda Escola Sem Partido, ou tirando uma selfie localizada na “Escola Estadual com Nome De Algum Militar Que Quase Ninguém Sabe Quem Foi”. Muitas funções, muitas informações.
Agora os smartphones são ferramenta principal pra que as aulas continuem acontecendo em meio a uma pandemia de covid-19. A ordem “Guarda o celular!” se contradisse, e agora é através dele que nos comunicamos, quando o plano EAD (ensino a distância) dá certo para os alunos das escolas estaduais de São Paulo. E é sobre o funcionamento de algumas delas que consigo falar hoje, ou sobre como estamos nós, professores, lidando com a experiência de um ensino à distância. Então, de onde surgiu esse tal aplicativo, Centro de Mídias, com o qual trabalhamos hoje? Teria alguma relação com as câmeras do Escola Sem Partido?
App Mano e Escola sem Partido
Mês passado soubemos por meio da matéria feita pela The Intercept Brasil qual empresa é responsável pelo aplicativo Centro de Mídias, com o qual trabalhamos desde o início da suspensão das aulas presenciais. Em 2018, a empresa IP.TV foi responsável pela criação de um app de streaming chamado Mano, usado para abrigar vídeos e notícias falsas da campanha de Jair Bolsonaro na época, conteúdo esse comumente vetado pelas redes sociais mais populares. O app teve Flávio Bolsonaro como garoto-propaganda, estimulando a migração das redes sociais mais comuns para esse app, e ainda hoje os alunos do Amazonas, Pará e Piauí têm acesso ao canal “TV Bolsonaro”, ao mesmo tempo em que acessam os canais da rede pública de ensino. O app Centro de Mídias foi doado pela empresa IP.TV e recebe dados de cerca de 3,5 milhões de alunos, além dos dados de todos os professores e demais funcionários da equipe pedagógica das escolas estaduais paulistas*. Coincidências.
O movimento Escola Sem Partido, por sua vez, se deu a partir da acusação de doutrinação político-ideológica dos professores para com os alunos. Agora, as “escolas sem partido” têm como ferramenta principal de trabalho um aplicativo que tem como base o Mano, app desenvolvido em 2018, época de campanha, em parceria com Jair Bolsonaro. A empresa desenvolvedora tem hoje acesso a todos os dados inseridos nesse app educacional: materiais didáticos, atividades, aulas gravadas, videoconferências, chats e o que mais acontecer, dentro e fora do aplicativo Centro de Mídias (galeria de fotos, microfone do celular, dentre outros). Mais uma vez a ideia de “partido”, seja como “tomar partido”, seja como partido político, é seletiva: pretensamente neutra, a Escola Sem Partido não se mantém muito longe da “tomada de partido”, quando seleciona discursos que devem ser usados (TV Bolsonaro, para alguns estados brasileiros) e outros a serem descartados e até proibidos. Enquanto presencialmente há a distância no espaço da sala, com as técnicas da escola, entre professor e aluno, entre corpo x mente, pelo bem da imparcialidade e da transmissão de saberes isentos… Em EAD, quão distantes estamos agora, comparado ao que tínhamos presencialmente?
Bell Hooks e a pedagogia libertadora em um ensino à distância
Bell Hooks fala de uma pedagogia libertadora que nos faz sair dos limites de nosso corpo, da divisão corpo e mente, sair da crença de que se faz necessário não romper a linha de fronteira entre a escrivaninha do professor e a extensão da sala de aula, onde não se pensa com o corpo, o corpo que fica de pé, que gesticula, que fala com o corpo e a mente. “A noção tradicional de estar numa sala de aula é a de um professor atrás de uma escrivaninha ou em pé em frente à classe, imobilizado”*.
A pedagogia libertadora põe o corpo para frente da escrivaninha, para o meio da sala, onde se vê que ali também há um corpo como o dos alunos, também há opiniões e gostos pessoais, cheiros, roupas, gestos. Como a pedagogia pode ser libertadora num ensino à distância?
O aluno pede desculpas por não conseguir acessar as lições que você posta na plataforma Google, lhe pede ajuda, e você o ajuda da maneira que pode, pelo seu whatsapp pessoal, por exemplo. Os professores se desdobram para montar videoaulas, “textos-aulas”, realizar videoconferências com os poucos alunos que participam. Alguns professores são avisados de que é preciso elaborar somente atividades escritas, pois alguns alunos estão indo à escola buscar as atividades impressas toda semana – não há comunicação por celulares ou computadores. A troca de saberes acontece quando você sabe que seus alunos estão ali minimamente (agora do outro lado da rede), lendo, ouvindo e entendendo o que você quer dizer. Mas será que a mensagem que enviamos está chegando?
Agora rompemos mais uma vez as fronteiras, e a pedagogia é arremessada num espaço cibernético onde coincidências e desrespeitos à privacidade acontecem sem que se dê muita importância. Onde doações são feitas a um custo: doa-se um app, se ganha uma quantidade enorme de dados que podem ser utilizados tanto numa estratégia governamental quanto numa estratégia de lucro.
A educação de plataforma não vê mais corpo, não vê limites entre privado e público, já que agora mal temos como opção passar ou não o número de telefone pessoal pra mandar uma mensagem no “zap” e tentar encontrar seu aluno prestes a desistir da escola, por exemplo. O áudio do “zap” vira uma mini aula (“Mas pode falar se você não entendeu a atividade, tá? Eu mando outro áudio!”) para alguns; as mensagens dos alunos chegam a qualquer hora do dia (ou da noite), aquele grupo de whatsapp parado virou o grupo da sala do 1º ano, onde só quem fala é professor, e os alunos não aguentam mais tanta atividade.
A educação de plataforma não vê mais corpo, não vê limites entre pessoal e profissional, não vê limites de espaço e tempo, esquece dualismos para se colocar ali: no meio de todas as informações processadas em uma velocidade que não acompanha o nosso próprio ritmo de pensamento e raciocínio, nem dos alunos, nem dos professores.
Ainda, sobre raciocínio: qual a didaticidade existente em escrever textos para que os alunos consigam ler e fazer as atividades com base nesse “texto-aula”? No máximo, textos que imitem a sua própria fala em sala de aula, com gírias, com memes, sem se importar tanto com as regras gramaticais. Mas e quando a dificuldade de leitura é mais forte? E quando é difícil se concentrar em casa? Pesquisar a resposta daquela pergunta de alternativa no Google soa ainda mais tentador, à distância…
Isso tudo quando há o acesso: muitos alunos ao menos conseguem acessar o tal aplicativo, porque não têm celular em casa, porque estão usando a internet do vizinho e ela não “pega” bem, porque o celular que “pega” em casa é do pai ou da mãe, e eles trabalham o dia todo e precisam do celular para sair para o trabalho. Tantas reportagens sobre como tem sido a educação à distância para o ensino privado em contraposição ao ensino público, e enquanto no primeiro há até maior engajamento, eu me pergunto: quais os incentivos reais para continuar estudando, estando no ensino público e vivenciando situações como as que citei ali em cima? Vivendo os problemas já enfrentados em meio às técnicas escolares clássicas, presenciais, disciplinares, excludentes, agora potencializados pela tecnologia digital.
Há algumas semanas fizemos reuniões com algumas turmas de alunos, depois de um “Conselho” improvisado (“fulano fez a lição? “não”, “não também”, “não fez”, “ok, vou tentar contato com ele. Ciclano…?”), em busca de animá-los, de não deixar que desistam, de encontrá-los e saber o porquê do sumiço, de não fazerem as atividades, de mal acessarem o tal app do governo. No geral, a maioria dos participantes das reuniões eram professores. Os alunos iam entrando na videoconferência aos poucos. Somente alguns alunos participavam, mas muitos eram já bem participativos nas aulas presenciais. A nota de participação também envolve questões de acesso à internet, celular, tv, e outras técnicas pagas, principalmente agora.
Boatos que uma sala do 3º ano do Médio combinou entre si de reprovar em conjunto: uma professora comentou que é como se eles se incentivassem a não fazer as lições, mesmo tendo acesso normal às plataformas de ensino. 3º ano do Ensino Médio, poucos alunos restantes na turma, porque muitos provavelmente já desistiram antes de qualquer tecnologia digital virar ferramenta principal de estudo. Como reanimar?
Todos os dias os grupos de Whatsapp dos professores são bombardeados por mensagens de “Bom dia”. Seria uma forma sutil de assinar o ponto ou só se deseja um bom dia mesmo? Já fiquei na dúvida e mandei “bom dia” algumas vezes, mas agora sei que existem formas ainda mais sutis de contar presença: nossos coordenadores nos avisaram dos relatórios de presença baseados na quantidade de “logins” às plataformas de ensino, Google Classroom, app Centro de Mídias, entre outros. Os professores que não estão acessando as plataformas são notificados, e precisam acessar as plataformas para que não fiquem com faltas.
Quanto menor é, mais nocivo pode ser
Quanto menor é, mais nocivo pode ser. “Eles são, tanto política quanto materialmente – difíceis de ver. Eles têm a ver com a consciência – ou com sua simulação”*. Os tais “chips de silício”, os smartphones, ocupam a função de base de trabalho agora: relatam nossa frequência, determinam nosso salário; facilitam ou dificultam o acesso dos estudantes ao aprendizado, inclui alguns, exclui melhor ainda outros; quebra barreiras entre a tal vida pessoal e a vida profissional, o privado e o público, o espaço e o tempo, de trabalho e de lazer; gera desânimo, desistências, afastamentos entre o aluno e o professor; por fim, dão lucro e alimentam muito bem bancos de dados de algumas empresas de tecnologia, como a que criou o app Mano, base para o atual Centro de Mídias paulista.
Ao fazer a troca de ambiente técnico, não mais a escrivaninha, a lousa, o giz e o apagador, mas o smartphone e o computador, a internet, a mediação: como seria possível realizar uma pedagogia libertadora numa era de ciborgues?
Libertadora para a professora/professor, resguardando sua liberdade de expressão, prevenindo a seletividade dos movimentos “Sem Partido”; libertadora para o aluno, que se apropria do conhecimento, que tem voz ativa e crítica frente ao conteúdo que aprende, que entende o funcionamento das práticas educativas tanto online quanto presencialmente.
Os smartphones já estão aqui, ao nosso lado. Os ciborgues já estão aqui há algum tempo. Agora, o aperfeiçoamento é nítido: as técnicas de controle se afunilam, a liberdade de expressão é ainda menor, a mediação torna-se um caminho quase sem volta, quando se pensa num mundo pós-pandemia. Como formar uma unidade de resistência, professores e alunos, frente a essas novas técnicas de controle?
É. Agora preciso responder aos meus alunos.
Leticia Rolim
Referências
*https://theintercept.com/2020/06/15/app-empresa-tv-bolsonaro-aulas-online-pandemia/
*HOOKS, Bell. “Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade”. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – 2 ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
*HARAWAY, Donna. “Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano – O Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. Organização e tradução Tomaz Tadeu – 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009 – (Mimo).
Posted: May 14th, 2020 | Author: Perceptos | Filed under: General | Tags: Biopolítica, Covid-19, Governamentalidade, Saúde | Comments Off on Trabalho em saúde nos tempos de COVID-19

Imagem: Susana Vera/Reuters
Me pego durante a noite no recolhimento de onde moro agitado pesquisando em meu smartphone o que seria uma citocina. Durante o dia enquanto estava na UBS ( unidade básica de saúde) onde trabalho assistia de relance o noticiário vespertino televisivo sobre o coronavírus quando um dos convidados do programa menciona a palavra citocina a elencando como uma agente importante no processo doença ocasionado pelo vírus. O convidado era um infectologista que buscou resumidamente explicar a motivação de falarmos sobre um grupo de risco. Existem diversos tipos de citocinas com funções variadas sendo parte delas atuar na regulação do mecanismo inflamatório infeccioso do organismo. Há um momento pró-inflamatório em que se busca destruir moléculas maléficas, no caso as do vírus, e no antiinflamatório busca controlar a resposta da defesa imunológica para que esta não acarrete mais malefícios do que benesses ao corpo humano. Pois bem não apenas em infecções se encontram as inflamações e as citocinas. Doenças como hipertensão, diabetes mellitus dentre outras de caráter crônico são influenciadas pelo mecanismo citocínico apresentando um desequilíbrio entre as respostas anti e pró. Ao passo que envelhecemos esse processo também ocorre levando a uma gradual deterioração imunológica. Não mais me alongando a essa questão, aprendi com a breve leitura digital de notícias e com a fala do infectologista que a COVID-19, ao que aparenta os estudos iniciais, é uma doença provocadora em casos graves de uma “tempestade citocínica” na qual a ação pró inflamatória do organismo é muito mais forte do que fornece a anti levando a uma síndrome respiratória, ou seja, a trama do agente viral é causar um adoecimento pela própria defesa de nossos corpos. Dessa forma os classificados como grupo de risco podem apresentar maior suscetibilidade ao agravamento da doença uma vez que já apresentam uma relação citocínica desequilibrada.
Volto a mim analisando o que pesquisei. O decorrer da noite me aparenta mais tranquilo pós leitura. Sei bem que em meus pensamentos não compreender ou estranhar situações e coisas me causa um mal estar. Na UBS em que trabalho cada um procura ou já exercita seus procedimentos para atenuar os impactos da pandemia em sua sanidade. Ignorar ou manter no inconsciente é uma alternativa, mas nas conversas atuais se percebe uma inclinação a buscar terapias senão agora, para o pós crise. Tal percepção pode vir a não se realizar, mas o abalo emocional existe e se demonstra mais nítido na possibilidade dos profissionais de saúde transmitirem a doença aos familiares. A culpa se instaura mesmo não havendo um contágio (será que sou um caso assintomático?) agindo como uma pré indicativo de doença. Então o não contaminado está/é doente? Essa classificação típica da biomedicina mantém uma relação estreita com o que os estudos de inspiração foucaultianos nos apresentam conceitualmente como biopolítica, biopoder e governamentalidade. Nesse sentido o poder biomédico agencia nossos hábitos mantendo uma relação estreita com a economia sendo também base para formas de se viver e sentir. Ocorreu com a pandemia uma intensificação na disseminação de vídeos e mensagens com fórmulas e ingredientes para se manter uma higienização e dieta alimentar preventiva ao adoecimento. O coronavírus fornece novos contornos a um processo de assujeitamento e subjetivação do qual me atentarei aos efeitos para com os trabalhadores na área da saúde sendo também abordado a reestruturação produtiva em saúde ocasionada por ela, em particular, ao que ocorre na UBS em que trabalho.
No que se refere a tecnopolíticas, na distinção entre tecnologias duras e relacionais no arranjo sociotécnico da UBS, a COVID-19 levou a uma reestruturação produtiva uma vez que parte da força de trabalho integrante se encontra no grupo de risco e puderam se afastar do ambiente de trabalho via decreto municipal. Àqueles que se mantiveram se depararam em uma situação em que as divisões e protocolos existentes foram modificados. As consultas eletivas foram canceladas, consultórios foram repassados à ala do Pronto Atendimento na tentativa de minimização de contágio interno, as visitas domiciliares ( de suma importância na vinculação entre usuário e UBS, assim como no acompanhamento do processo saúde/doença) de agentes comunitários foram via decreto municipal canceladas (em outras cidades não foram) e a campanha vacinal de influenza antecipada para ajudar na identificação de casos de coronavírus. Ocasionou de o gerente da UBS estar de férias, consequentemente a assistente de gestão pública da unidade assumiu a função. Dois dos cinco enfermeiros chefes se afastaram via decreto. Somente um (1) auxiliar de enfermagem permaneceu. Dada a situação as divisões de equipes e microáreas dentre o território se tornaram disfuncionais, os compromissos com a secretaria de saúde temporariamente modificados. Digo compromissos como por exemplo a suspensão temporária dos grupos (de insulino dependentes, de gestantes, de apoio ao cuidador dentre outros) com reuniões mensais dos usuários da UBS em que se trabalha a educação em saúde. Revogou-se a obrigatoriedade de assinar as retiradas de materiais de insumo pelo usuário da UBS sendo somente necessário o trabalhador escrever no espaço indicado COVID-19 visando-se o não compartilhamento de canetas, manuseio de documentos nem a permanência por muito tempo no ambiente insalubre. Em consonância a esse movimento a descrição do mapa diário do ACS e a do enfermeiro da família estão sendo respaldadas através do código “COVID-19”. Dessa forma uma resposta a um email advindo da regional de saúde cobrando dados sobre um determinado trabalho se justifica, no limite, com o termo “COVID-19”.
Os protocolos, os referenciais técnicos e administrativos e de igual forma os usuários são os instrumentais que fazem funcionar a UBS, sem estes os trabalhadores em saúde não realizam a produção em saúde. No referencial macropolítico a OMS e os Estados nacionais seguem mantendo uma relação com momentos ora conflituosos ora consonantes. Aos profissionais de saúde e no caso observado também servidores públicos municipais, o referencial medicinal misturado as preferências políticas partidárias e político ideológicas intensificou um clima de tensão e atrito. A não conformidade entre o executivo estadual e federal só piora. Para alguns a eminente desestabilização dos sistemas de saúde prenunciava o estado de calamidade pública, para outros a situação geraria apenas polêmicas em torno do poder executivo, contudo sem força pois agora a pátria amada descontaminada da corrupção aguentaria tranquilamente uma gripezinha. Somados a situação inicial em que não se encontravam na rede EPI suficientes aos funcionários, começamos a questionar não se estamos preparados (a sensação é que não estávamos) mas como minimizaremos os danos. Ora a movimentação de prevenção em saúde se tornou prevenção em UTI (não há respiradores suficientes), a governamentalidade aceita determinada quantidade de mortes com o condicional de minimizar os impactos na economia e esse discurso está se reverberando sendo a vontade de muitos que se retome a “normalidade” mesmo se a situação pandêmica não evidenciar melhora. Além disso a não adoção de parte da população ao distanciamento social voluntário coloca os trabalhadores em saúde, e os da UBS, a questionar sua função na estrutura. Do que adianta a energia e esforços dispensados se o pacto não está sendo cumprido por todos? Há ainda um sentimento extremamente perverso do qual os trabalhadores em saúde não afastados experimentam algo próximo de um sentimento de inveja em relação aos que estão pois estes não vivenciam, pelo mesmo não da mesma forma, a situação pandêmica. Uma inveja que leva a uma pessoa a desejar ter uma doença crônica o encaixando no grupo de risco para não ficar na linha de frente. Por outro lado, um servidor portador de doença crônica se afastar leva a um sobrecarregamento daqueles que permanecerão, então serei eu nesse momento tão crítico que “abandonarei” o meu companheiro de profissão? Uma outra situação contribui ao caldeirão de emoções experimentados pelos trabalhadores em saúde e está ligada ministério da saúde. Uma convocatória para cadastramento em um banco de dados na qual os profissionais se alistam e se sujeitam a serem chamados, se necessários, a trabalhar diretamente ao órgão onde quer que seja dentro do território brasileiro. Há um misto de sensações entre os que estão contrariados e os que aceitam o chamamento. A responsabilidade pública ligada a solidariedade social está misturada ao identitarismo nacional. Considerações como se de fato vale a pena se separar dos familiares para ir trabalhar para este governo e por outro lado, aos que se sensibilizam com o nacionalismo, muitos não concordam com as decisões feitas pelo ministério e secretarias de saúde, porém negar um chamamento nessa situação seria negar a pátria?
Por fim, observando a micropolítica e me atentando a UBS anteriormente referenciada, os referenciais em abalo e o afastamento de parte de corpo técnico e administrativo levou a uma situação em que a construção interna se efetivou com novos pactos. De certa forma a justificativa “COVID-19” possibilitou uma abertura a ingerência com a uma prática em saúde coletiva mais livre. Aos que têm estratégia saúde da família a vinculação com a população facilitou a perpetuação das novas regras e condicionalidades necessárias, respeitando evidentemente o princípio da universalidade e solidariedade social. Foi nítido também a dificuldade daqueles que não possuem acompanhamento via Saúde da Família em entenderam as modificações para a ala de emergência e da cobertura vacinal. Passada as primeiras semanas e a comprovação da efetividade das medidas, a sensação coletiva que fica (diferente da inicial) é a de que podemos lidar com a pandemia apesar do que se passa com referenciais técnicos e administrativos. Para além do que a governamentalidade possa assujeitar e, no limite da situação, aceitar de mortes, existem aqueles que não aceitam e dentre os trabalhadores da saúde isso tende a se tornar nítido. A morte faz parte da vivência destes. Tem lógica e significado sendo sentida de diversas formas por cada um, mas àquela justificada pela razão de “o país não pode parar”…essa não se justifica.
Henrique Ribeiro
Referências
As ‘tempestades de citocina’, presentes em casos graves da COVID-19. Isto é dinheiro, 05 de abr. de 2020. Disponível em:
<https://www.istoedinheiro.com.br/as-tempestades-de-citocina-presentes-em-casos-graves-da-covid-19/>. Acesso em: 15 de abr. de 2020.
ZAMBOM, Fernanda Florencia Fregnan. Citocinas. Portal Educação, 2020.
Disponível em:
<https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/biologia/citocinas/58538>. Acesso em 15 de abr. de 2020.
Opinião – Marcelo Leite: Tempestade celular pode explicar mortes por coronavírus. Folha de S.Paulo, 06 de abr. de 2020. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marceloleite/2020/04/tempestade-celular-pode-explicar-mortes-por-coronavirus.shtml>. Acesso em 15 de abr. de 2020.
OPAS/OMS Brasil – Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). 15 de abr. de 2020
Disponível em:
<https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875>. Acesso em 15 de abr. de 2020.
Dardot e Laval: A prova política da pandemia. Blog da Boitempo, 26 de mar. de 2020.
Disponível em:
<https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/26/dardot-e-laval-a-prova-politica-da-pandemia/?fbclid=IwAR1ueO1EXblENfGkZtfRTR5HHwgc5iAXqUg19MBweI6bCnKK6HlICbgbRRU>. Acesso em 15 de abr. de 2020.
Redacao. Os riscos da pandemia e da má gestão para os agentes comunitários de saúde. Estado de S. Paulo, 06 de abr. de 2020. Disponível em:
<https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/os-riscos-da-pandemia-e-da-ma-gestao-para-os-agentes-comunitarios-de-saude/?utm_source=estadao%3Awhatsapp&utm_medium=link&fbclid=IwAR1b5fskaGeCNY3Y-xa4FTMEwtBQpbnGHD0J5rIbnMBygRU9505rdyO0FsY>. Acesso em 15 de abr. de 2020
Harayama, Rui Massato. Coronavírus, Cultura, Medicalização e Necropolítica. Rede Humaniza SUS, 21 de mar. de 2020. Disponível em:
<http://redehumanizasus.net/coronavirus-cultura-medicalizacao-e-necropolitica/>. Acesso em 15 de abr. de 2020.
Posted: December 7th, 2019 | Author: Perceptos | Filed under: General | Comments Off on Feenberg, Ellul e a eficiência tecnológica

(ilustração: Bárbara Abbês)
Andrew Feenberg em sua obra “Transforming technology” (2002) prolonga as análises da Escola de Frankfurt, em especial as de Marcuse, para discorrer sobre a tecnologia, sua vinculação com o capitalismo e a possibilidade de uso democrático da tecnologia.
Para Feenberg, a tecnologia constitui a própria estrutura material da Modernidade. Não é neutra, pois é carregada de valores provenientes de sua vinculação com o capitalismo, como controle, eficiência e uso de recursos – a chamada “cultura de empresários”. O autor defende que a tecnologia é controlável e está sob o uso de valores antidemocráticos, sendo ela a própria manifestação de uma racionalidade política. Acredita que as instituições sociais e o desenvolvimento tecnológico se adaptam reciprocamente, um ao outro. Logo, a tecnologia deve ser controlada democraticamente.
A cultura de empresários citada pelo autor é a cultura que enxerga o mundo em termos de eficiência, recursos e controle. Feenberg reconhece a tecnologia como a manifestação de uma racionalidade política, pois os valores da cultura capitalista estão impregnados no desenho tecnológico, e, para que esse desenho mude, seria preciso realizar mudanças culturais.
A tecnologia adquire caráter social na concepção de Feenberg, pois ao invés das decisões tecnológicas se darem conforme o funcionamento eficiente do processo/artefato em questão, dão-se também conforme interesses sociais, sendo a própria eficiência definida como a satisfação de determinados interesses e valores sociais.
A eficiência da tecnologia num sistema capitalista, em resumo, tem como medida o lucro, medida que se realiza essencialmente por meio da compra e venda de mercadorias. Isso significa que outras preocupações como qualidade de vida, a proteção do meio ambiente e acesso a direitos básicos como saúde, educação e transporte ocupam lugares secundários, quando não são simplesmente ignorados dentro de um sistema capitalista técnico.
Para mudar esse cenário, Feenberg propõe que a eficiência seja concebida de modo a atender às exigências humanas de maneira democrática, assumindo medidas tais como: ampliação do tempo de vida dedicado à aprendizagem, a democratização da administração e a inclusão de uma variedade cada vez maior de necessidades humanas nas técnicas existentes para, desse modo, evoluir em direção a um tipo de socialismo a partir dos atuais estados de bem-estar social.
Já no ponto de vista do filósofo Jacques Ellul em obras como “A técnica e o desafio do século” (1968) a tecnologia é autônoma. Dizer isso implica dizer que, para o autor, a partir do séc. XVII vê-se surgir um novo meio, tal qual era o meio da natureza; trata-se agora de um meio tecnológico.
Para Ellul, todos os fenômenos se localizam num meio tecnológico. Isto significa que a política, por exemplo, não é influenciada, mas se situa num meio tecnológico, e seu movimento consiste em se adequar a esse meio – a última eleição presidencial brasileira, em 2018, cuja ação e propaganda política ocorreu em peso por meio de aplicativos de grandes corporações tecnológicas como Facebook, Whatsapp e Youtube, serve de exemplo à essa adequação.
A tecnologia possui uma lógica própria, é autodeterminante e sua racionalidade se baseia unicamente na eficiência do processo/artefato. Sendo assim, retira-se do domínio da escolha humana, pois a escolha está no domínio da eficiência: o mais eficiente é o escolhido dentro do meio tecnológico.
A eficiência ao modo da tecnologia autônoma se resume, então, em relações de meios e fins, de modo a alcançar máxima eficiência no ajuste destes. Não importam os fins últimos, pois a tecnologia autônoma não possui valores, mas sim o perfeito ajuste entre meio e fim, a partir de um conjunto de regras que definem a tecnologia. É por isso que a sociedade tende a se ajustar à tecnologia, e não o contrário: os fins, desejos humanos, valores e tentativas de controle são irrelevantes para a tecnologia, que se põe autodeterminada tal qual um meio natural, a partir de relações eficientemente ajustadas entre meios e fins.
Na abordagem de Ellul a eficiência gira em torno de uma acumulação de meios que estabelecem primazia sobre os fins. Isto é, a tecnologia é autodeterminada, tal qual a natureza, e desenvolve-se segundo um processo causal, mas não dirigido a fins, pois não há intervenção humana na concepção de eficiência da tecnologia autônoma. A eficiência é racionalidade sistemática, pois se trata somente de um sistema de regras que eliminam o discurso espontâneo e a criatividade pessoal para, no lugar, mostrar-se como uma racionalidade matemática no ajuste eficiente de meios a fins, não importando quais sejam os fins, já que a tecnologia é autônoma em relação a valores, ideias e Estados.
Para Feenberg a eficiência tecnológica é, de fato, o próprio interesse social. Disfarçada de interesse no ajuste técnico eficiente, mas preenchida por altas doses de valores e intenções humanas, e da própria cultura empresarial, a tese feenberguiana de eficiência provém de sua famosa tese sobre a tecnologia. Se para o autor a tecnologia é controlável e serve aos interesses do capitalismo, sua concepção de eficiência também afirma uma tecnologia controlável e feita de valores, sendo a eficiência o pano de fundo que indica os interesses por detrás de cada artefato e processo tecnológico. Ellul, por sua vez, defende uma tecnologia completamente autônoma, ocupando o mesmo lugar que um dia a natureza ocupou no desenvolvimento humano até o século XVII. Sendo o meio em que vivemos, não tem valores, intenções ou sistemas políticos/econômicos; somente obedece a eficiência de ajuste meio/fim, aquém de qualquer fim, independente e não controlável.
Partindo de quais pressupostos poderíamos afirmar uma saída mais democrática e humana frente aos problemas criados sob o uso da tecnologia?
Sendo ela controlável, por que ainda não fomos capazes de controlá-la, ou de minimizar formas de utilização da tecnologia antidemocráticas e/ou de caráter essencialmente voltado ao lucro? Seja por meio de legislações – nem sempre cumpridas ou cada dia mais distantes da consulta pública, como o caso da atual LGPD brasileira e as recentes alterações realizadas sob o governo de Jair Bolsonaro em 2019 -, seja por meio da ação hacker de whistleblowers como Julian Assange, Chelsea Manning e Edward Snowden – atualmente presos ou perseguidos por diversos países.
Eleições pautadas na divulgação em massa, via redes sociais, de notícias falsas sobre o oponente – estratégia que caracterizou a última eleição presidencial brasileira em 2018, na disputa entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, majoritariamente -; a utilização da tecnologia de mineração de dados para coletar e criar perfis a partir dos dados de 87 milhões de usuários do Facebook, sem consentimento, visando a modulação de suas convicções políticas por meio da rede social de Zuckerberg – estratégia utilizada pelo atual presidente dos EUA, Donald Trump, no escândalo da Cambridge Analytica em 2016.
Sendo a tecnologia autônoma, que perspectivas podemos ter para a resolução de problemas sociais, políticos e econômicos que também têm em si a presença da tecnologia? Que saída encontrar, então, para problemas sociais e tecnológicos? O problema está na tecnologia, autônoma em relação aos valores humanos, ou na política, na economia e na cultura, humanas e valorativas? Ainda é possível separar humano e não-humano?
Leticia Rolim
Referências:
CUPANI, Alberto. A tecnologia como problema filosófico: três enfoques. Scientiae studia, São Paulo, v.2, n. 4, p. 493-518, 2004.
Posted: November 12th, 2019 | Author: Perceptos | Filed under: General | Comments Off on O que é tecnocracia?

A noção de tecnocracia pode ser definida como o governo conduzido por especialistas técnicos, tanto engenheiros e cientistas quanto economistas e sociólogos, da ordem científica a ordem social-econômica. Defende-se que os tecnólogos são os mais aptos para governar uma sociedade, dado seu conhecimento técnico: matemático, para Platão; científico e de engenharia da época, para Francis Bacon (a partir de empreendedores que aconselhavam os governantes em Nova Atlântida); e científico, sendo a política uma forma de ciência aplicada ou engenharia social, para Augusto Comte, dentre outros teóricos do tema.
A reverberação do sistema tecnocrático no século XX até os dias de hoje se dá por meio de figuras como o economista Thorstein Veblen (1857-1929). Veblen foi o responsável pela comparação e aproximação das práticas dos negócios com a eficácia dos engenheiros. Propôs uma sociedade governada por engenheiros em vez de negociantes, pois, de acordo com ele, o engenheiro possui um “instinto de execução” humano enquanto o negociante possui instintos predatórios que não seriam úteis para um governo. Seu movimento tecnocrático político teve um breve momento de interesse e popularidade, quando caiu no esquecimento e a tecnocracia passou a se difundir de maneiras mais sutis.
A tendência tecnocrática realmente tomou força nos EUA a partir do movimento progressista do período da Primeira Guerra Mundial e do New Deal, por meio de figuras como Franklin Roosevelt (1882-1945). Comumente também sob o termo de engenharia social, a cultura do engenheiro como ideal administrador público espalhou-se tanto na sociedade americana quanto na Suécia, Alemanha e até nas duas ditaduras totalitárias do período da Segunda Guerra.
“[…] O nazismo incorporava uma estranha mistura retórica de antiintelectualismo, paganismo, alimentação saudável, nudismo, retorno à natureza e uma crença tecnocrática na capacidade dos engenheiros da nova tecnologia de levar o regime ao poder mundial. […] Na URSS, uma forte ideologia tecnocrática esteve presente na retórica stalinista de industrialização forçada (Bailes, 1978).” (Dusek, 2009, p. 70)
Na sociedade pós-industrial, aquela feita pelo crescente domínio do processamento de informações e das indústrias de serviços, fato que levou a novas formas de operários educados para supervisionar máquinas automatizadas e também levou ao governo tecnocrático (Dusek, 2009, p. 72), pode-se notar que a tecnocracia se dá a partir de fenômenos como a posse de grandes corporações por acionistas, mas dirigidas por administradores (ao contrário das antigas firmas de família, geridas e possuídas pela própria família), sendo os últimos dependentes de uma nova classe, composta por planejadores, engenheiros, psicólogos industriais, especialistas de publicidade, marketing e mídia, economistas e contadores, responsáveis por fornecer informações aos administradores.
“Alguns teóricos conservadores da sociedade pós-industrial afirmam que uma ‘nova classe’ é identificada com tecnocratas ou administradores, e às vezes é descrita como classe administrativa profissional (CAP)” (Dusek, 2009, p. 73)
O teórico Galbrath (1967) chega a afirmar que existem duas formas de tecnocracia, uma mais simples e outra mais sutil. A forma mais simples de tecnocracia se dá quando os especialistas técnicos governam diretamente, substituindo os líderes de negócios nas corporações e os políticos no governo de Estado. A outra forma, mais sutil, se dá quando os governantes (tanto políticos quanto líderes de negócios) dependem dos especialistas técnicos para tomar suas decisões e saber governar.
Podemos notar, portanto, que a classe de tecnocratas tem conquistado cada vez mais espaço, tanto sutilmente, quanto na própria forma de governante, onde o conhecimento tecnológico é colocado como superior, rigoroso e útil, a qualquer outra forma de conhecimento referente a questões sociais e aos problemas da vida cotidiana. É possível notar também que a racionalidade tecnológica, cujos princípios se resumem em racionalidade e eficiência, não é capaz de avaliar diversos problemas sociais como questões ambientais, por exemplo, pois por não possuir valores, retira do domínio da investigação a questão dos fins e dos valores implicitamente dominantes, no caso, dos tecnocratas e governantes.
Leticia Rolim
Referências:
DUSEK, Val. Filosofia da Tecnologia. São Paulo: ed. Loyola, 2009.
Posted: November 12th, 2019 | Author: Perceptos | Filed under: General | Comments Off on Conhecimento tecnológico ou ciência aplicada?

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O conhecimento tecnológico é costumeiramente colocado no mesmo plano de significação do conhecimento científico, tanto pelo senso comum, quanto por filósofos da ciência que equiparam o conhecimento tecnológico à ciência de modo a chamá-lo “ciência aplicada”, dada a notável proximidade entre o conhecimento científico e o conhecimento tecnológico. A seguir, com a ajuda do texto “La peculiaridad del conocimiento tecnológico” de Alberto Cupani, discorreremos sobre o conhecimento tecnológico buscando entender algumas de suas especificidades e as diferenças e proximidades do conhecimento científico.
Partindo da etimologia, podemos notar que técnica ou tekhne era definida na Grécia Antiga como uma forma de conhecimento, um saber-fazer, logo, um fazer que implica conhecimento. Este conhecimento não será científico, no sentido moderno de ciência, mas ainda será conhecimento, pois processos de pensamento foram desenvolvidos para que se inventasse a máquina a vapor, ou ainda os aquedutos romanos e as pirâmides egípcias, por exemplo.
Podemos observar em primeiro lugar que a índole do conhecimento científico e a do tecnológico são diferentes: enquanto o conhecimento científico parte de um amplo uso de idealizações, o conhecimento tecnológico se mostra mais limitado, pois firma-se na satisfação de tarefas, na produção de algo novo que atenda a determinada demanda. Sendo atividade produtiva, o conhecimento tecnológico busca resolver problemas como a relação custo-benefício, a eficiência e a confiabilidade do artefato, dentre outros que não tangem o fazer científico básico. Ainda, podemos diferenciar entre conhecimento prescritivo e conhecimento descritivo, sendo tecnológico o prescritivo, aquele que se põe como “ciência do artificial”, onde “[…] lo artificial constituye um sistema adaptado al ambiente em función de determinado propósito humano, un objeto (artefacto) con propriedades deseadas, ideado y fabricado conforme um diseño o proyecto (design)” (Cupani, A. 2006, p.356), e o descritivo como aquele exercido pela ciência, que descobre, descreve e explica o já existente e tem teorias de amplo alcance advindas de idealizações.
Quanto às noções distintas de tecnologia, Bunge apresenta a existência de dois tipos: as substantivas e as operativas. As substantivas concentram-se no conhecimento sobre a ação tecnológica, como a teoria sobre o vôo; as operativas focalizam na operação da ação tecnológica, a operacionalidade de que depende o funcionamento dos artefatos (Bunge, 1969, p. 684). Dadas estas noções, podemos perceber com maior especificidade que o conhecimento tecnológico está limitado a tarefa (sem deixar, por isso, de produzir conhecimento e ter valor cognitivo), enquanto a ciência se limita a teoria, de acordo com Joseph Pitt (cf. 2000, p. 33 ss).
As explicações tecnológicas, por sua vez, não se encerram na explicação causal; na verdade, preocupam-se com a funcionalidade do objeto (artefato), de que forma o projeto (design) cumpre determinada função de acordo com sua estrutura física. Ao contrário, a explicação científica irá de encontro com a causa, sem explicar funções.
A noção de conhecimento tecnológico é o conhecimento do que é possível, e diferencia-se da noção de conhecimento científico no que diz respeito à noção de verdade ou falsidade. Enquanto o conhecimento tecnológico caracteriza-se pela eficiência ou não eficiência (logo, seu modo de “verdade ou falsidade”), o conhecimento científico caracteriza-se pela verdade ou falsidade dos enunciados que é capaz de formular sobre as estruturas físicas.
O conhecimento tecnológico se põe, então, como um modo específico de conhecimento e de resolver determinados problemas de conhecimento. Não se reduz a técnicas sem valor cognitivo, mas sim a técnicas que implicam conhecimento prático, de eficiência ou não na experiência, de relações de custo-benefício, dentre outros problemas cuja solução o conhecimento tecnológico deseja alcançar. Se põe como um saber útil, mas isso não significa que não produza ocasionalmente saber não útil (Gutting, 1984, p.63).
Portanto, o que se conclui da explicitação sobre o conhecimento tecnológico é que os objetivos e métodos da tecnologia visam determinada demanda na experiência e a eficiência do artefato criado, sem a perda do valor cognitivo. Além disso, o próprio desenvolvimento tecnológico torna possível uma ciência aplicável, sem invalidar constatações e teorias científicas que não tenham aplicação ou interesse prático, dado que conhecimento científico e conhecimento tecnológico não são fases distintas de um progresso cognitivo hierárquico, mas podem relacionar-se entre si.
Leticia Rolim
Referências:
Cupani, Alberto. (2006). La peculiaridad del conocimiento tecnológico. Scientiae Studia, 4(3), 353-371. https://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662006000300002 (acesso em 13/10/2019, 21:22)
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